O que são as diferenças salariais justas e aquelas inexplicáveis

A nova Lei da Igualdade Salarial, sancionada pelo presidente Lula em julho de 2023, começa a entrar em vigor este mês, com o primeiro prazo para adaptação das empresas vencendo em 8 de março. Muito se fala que essa legislação prevê salários iguais entre homens e mulheres — seu objetivo, afinal, é acabar com essa diferença que ainda existe entre gêneros nas companhias. Dados do IBGE mostram que as mulheres recebem salário 22% menor em comparação aos homens.

Fato é que a lei propõe uma transparência salarial, mas isso, na visão de Rafael Ricarte, diretor da área de carreira da consultoria especializada em remuneração Mercer, não significa necessariamente que as empresas pagarão exatamente a mesma coisa para homens e mulheres que ocupem uma mesma função. “Esse equilíbrio ou equiparação não quer dizer que os salários ou rendimentos devem ser exatamente iguais”, afirma. “O principal é conhecer as diferenças e separá-las entre explicáveis e não explicáveis. As primeiras, explicáveis, podem ser consequências de variáveis como tempo de empresa, desempenho, habilidades, dentre outros, e devem ser, por definição claras e transparentes. Os desequilíbrios não explicáveis são aqueles que devem ser imediatamente ajustados”. Ele pontua que a transparência que a nova lei impõe “parece ser o maior avanço nesse sentido, além de reforçar a necessidade de equilibrarmos, sim, os salários entre gêneros”

Até 8 de março, as empresas com mais de cem funcionários têm que fornecer informações para o Relatório de Transparência Salarial do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Esses dados serão analisados pelo órgão, que também vai considerar informações inseridas pelas empresas no eSocial, para fazer a devolução do relatório para as organizações. Depois disso, as empresas terão que tornar público esse documento, em seus sites, por exemplo.

Muitas grandes empresas afirmam ter políticas de equidade salarial entre gêneros há muitos anos — bem antes do estabelecimento da nova lei. O Valor procurou seis delas, que afirmam ter a política, para explicarem como fazem essa equiparação salarial — somente duas responderam. Banco BV, Danone, Kimberly-Clarke Mondelez informaram por meio de suas assessorias de imprensa que não participariam da reportagem.

A farmacêutica Novartis, que concedeu entrevista, informou que em setembro de 2018 fez uma promessa pública com a Equal Pay International Coalition (EPIC), coalizão das Nações Unidas que advoga por salários iguais para homens e mulheres, “para melhorar processos de equidade e transparência salarial, além de alcançar o equilíbrio de gênero em cargos de gestão da companhia”. Disse que, na ocasião, assumiu compromissos específicos que tiveram um impacto positivo na busca pela eliminação da disparidade salarial.

Raquel Ucendo, diretora de people e organization da Novartis Brasil, explica quais foram algumas dessas ações. “Desde então, a Novartis já realizou uma série de medidas para conquistar esses objetivos: a companhia eliminou histórico salarial para contratações e movimentações, removendo assim vieses inconscientes; também passamos a realizar treinamentos sobre remuneração, decisões e conversas salariais, para que todos compreendam a política salarial; e lançamos a iniciativa ‘Transparência Salarial’ para fornecer ao colaborador visibilidade de comoseu salário se compara com o mercado externo e pares internos.”

Para Ucendo, a equidade salarial se baseia no conceito de conceder salário igual para trabalho igual e sem distinção de gênero. “No nosso caso, ao utilizar faixas salariais neutras em termos de gênero, garantimos que estamos remunerando de forma equitativa”, diz. Mas ela pontua: “Importante reforçar que a equidade salarial não significa que todos tenham exatamenteo mesmo salário. Estamos comprometidos em tomar decisões salariais com base em habilidades, experiência e qualificações relevantes. Isso significa que é possível ter duas pessoas fazendoo mesmo trabalho e ganhando quantias diferentes. Quando isso ocorre, a diferença precisa ser justificada com base em habilidades e experiências. Temos muito cuidado para monitorar e implementar estratégias para garantir que as diferenças ocorram por aspectos técnicos. Isso exige uma jornada que abrange vários aspectos além de análise salarial, essa consciência precisa estar presente no momento da contratação, desenvolvimento, discussões de carreira e oportunidades oferecidas, para mencionar apenas alguns fatores.” 

Nesse sentido, ela diz que o monitoramento da equidade salarial é algo contínuo e que faz parte do dia a dia da organização, uma vez que as bases salariais e movimentações de posições acontecem de forma constante na companhia. Atualmente, a Novartis tem 920 funcionários, sendo 55% mulheres. Nos cargos de liderança a presença feminina sobe para 58%. Nas posições que envolvem gerenciamento de equipes, de maneira geral, 52% são ocupadas por mulheres.

A Mastercard, de serviços financeiros, informou que há quase uma década “se concentra em cumprir o princípio de que mulheres e homens recebam salário igual por trabalho igual” dentro da companhia. “É algo que revisamos com diligência anualmente e buscamos continuamente as melhores práticas para avaliar nosso progresso”, comenta Luciana Cardoso, vice-presidente de recursos humanos da Mastercard no Brasil. Quando questionada sobre como se dá, de forma prática, essa política, a companhia optou por não explicar.

Sobre a nova lei, Cardoso comentou que “a Mastercard aguarda a disponibilização do referido relatório, que será feita pelo Ministério do Trabalho até 15 de março, e está atenta à preservação dos direitos de seus empregados, inclusive o sigilo salarial”.

A executiva comenta, ainda, que, no quadro de liderança da Mastercard do Brasil, 55% é composto por mulheres, contra 38% há três anos.

Na semana passada, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, disse em evento da Força Sindical na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, na capital paulista, que há empresas ameaçando acionar a Justiça contra a Lei da Igualdade Salarial. Ela comentou que há um desafio para implementar a lei.

Marcela Ortega Tavares, advogada sênior da área de direito trabalhista do Machado Meyer Advogados, explica que, após uma live promovida pelo MTE em fevereiro, e com a publicação do modelo de relatório que será elaborado pelo MTE, a principal ressalva é que a metodologia que será utilizada pela autoridade trabalhista não observa os requisitos do artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — artigo esse que regulamenta a equiparação salarial — e a própria Lei de Equidade Salarial entre Mulheres e Homens. “O resultado é que há uma tendência de que os relatórios tragam distorções que não correspondem à realidade das empresas”, afirma. “O relatório terá indicadores de diferenças salariais que não comparam empregados que desempenham a mesma função e com igual valor. Essa metodologia poderá resultar em distorções que apontem inconsistências inexistentes se fossem utilizados os critérios legais dispostos no artigo 461 da CLT.” 

Segundo a advogada, a publicação do relatório com “distorções significativas, dentro de uma metodologia que não observa a legislação, poderá resultar em danos reputacionais relevantes”. Ela pontua, ainda, que a Lei de Equidade Salarial prevê que a publicação do Relatório de Transparência Salarial elaborado pelo MTE ocorra sem que a empresa tenha prazo para apresentar justificativas paras as possíveis distorções e inconsistências. Empresas que não publicarem o relatório estarão sujeitas a multa correspondente a 3% da folha de salários, limitado a 100 salários-mínimos.

Ricarte, da Mercer, diz que um dos principais obstáculos para a igualdade salarial é a jornada histórica das mulheres no mercado de trabalho, marcada por aspectos como “entrada tardia, papel sempre secundário, exclusão quando da maternidade e necessidade de cuidados familiares, dentre outros”. “Depois seguimos com os vieses inconscientes que estão imbuídos na mentalidade coletiva da gestão contemporânea, dominada por profissionais com educação e formação fortemente influenciada por essa jornada histórica das mulheres”, diz. “Por fim, há de se citar também que a visão predominante na sociedade e nas organizações faz com que as mulheres se sintam desvalorizadas a ponto de negociarem menos a própria remuneração, ousarem menos quando há desafios para as quais não se sentem preparadas e desafiarmenos a liderança majoritariamente masculina”. As empresas costumam alegar, também, que é mais difícil promover a igualdade salarial em cargos mais altos, quando fatores individuais do profissional interferem em sua remuneração.

Ricarte pontua, ainda, que, em geral, as empresas não estão preparadas para nenhum tipo de aberturade faixas salariais, resultados de bonificações, programas de retenção e demais programas que afetam o salário da força de trabalho em âmbito coletivo ou individual. “Isso, sim, pode ser um problema à medida que caminhamos para um futuro em que a remuneração deixará de ser uma caixa-preta”, afirma.

O especialista comenta também que as políticas e orçamentos de mérito e promoção devem ser reposicionadas de forma mais afirmativa. “Devem abarcar espaços para as eventuais correções que precisarão ser feitas”, diz. “Logo, para as diferenças explicáveis, as equipes de RH devem estabelecer critérios claros e objetivos, preferencialmente amparados por metodologias de consultorias e pareceres legais internos ou externos”. Por fim, ele continua, de nada adianta explicar as diferenças com bons critérios, corrigir as diferenças não explicáveis e comunicar claramente as ações sem atacar as causas históricas de desigualdade de gênero que perpetuam o problema. “É importante que as organizações entendam que se trata de uma mudança de mentalidade, e não apenas de um projeto com início, meio e fim.”

Fonte: Valor Econômico