Justiça passa a analisar processo com base na perspectiva de gêneros

O Judiciário começou a levar em consideração a perspectiva de gênero em seus julgamentos. São decisões que garantem à mulher equiparação salarial com colegas homens ou proteção a grávida e trabalhadora que não tem com quem deixar o filho após a volta da licença-maternidade.

Elas são fundamentada no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado em fevereiro pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e previsto na Recomendação nº 128. O texto, que segue determinação da Corte Internacional de Direitos Humanos (Corte IDH), orienta a magistratura a compreender a perspectiva de gênero para superar estereótipos e preconceitos.

De acordo com a advogada e professora da PUC-SP, Fabíola Marques, o protocolo, estabelecido para todo o Judiciário, deve ser aplicado para a resolução de conflitos em que o gênero possa influir de alguma maneira na situação enfrentada.

“Diante da situação que hoje se apresenta, as mulheres ainda não têm um papel de igualdade na e de certa forma consertar, corrigindo essa desigualdade, ao nivelar as desigualdades existentes”, acrescenta.

Com base no protocolo, uma funcionária conseguiu anular seu pedido de demissão por não ter com quem deixar seu filho após a licença-maternidade. Ela requereu a prorrogação da licença por alguns dias, mas, diante da recusa, pediu demissão, abrindo mão da estabilidade gestacional e do emprego.

Ao analisar o caso, a 5ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas (SP) considerou a demissão nula. O relator, desembargador Lorival Ferreira dos Santos, ressalta em seu voto que, embora discriminações contra gestantes e lactantes sejam vedadas pela legislação trabalhista, muitas mulheres ainda são vítimas de padrões pensados para o homem médio, “por estarem inseridas num modelo de regras e rotinas de trabalho estabelecidas a partir do paradigma masculino”.

A decisão converteu a dispensa para rescisão imotivada pelo empregador. A empresa foi condenada a pagar indenização pelos cinco meses de estabilidade pós-parto, além de verbas trabalhistas, como saldo de salário, aviso-prévio indenizado, FGTS acrescido de 40% e as multas previstas nos artigos 467 e 477 da Consolidação das Leis do Trabalho (processo nº 0011031-97.2021.5.15.0079).

Em outro caso, uma funcionária que faltou por mais de 30 dias seguidos ao trabalho em razão da sua gravidez conseguiu reverter a demissão por justa causa. A empresa a demitiu por abandono de emprego. Mas a trabalhadora alegou que apresentou atestado médico e manteve contato telefônico com a empregadora no período, explicando a situação.

O processo foi analisado pela juíza Yara Campos Souto, da 8ª Vara do Trabalho da Zona Sul (São Paulo). Ela entendeu que havia desigualdade, uma vez que a condição de mulher e gestante expõe, por si só, a trabalhadora à discriminação no emprego. “O requisito objetivo parece não ter sido construído e pensado para a situação de uma mulher grávida, no trimestre inicial de gestação, acometida por intenso mal estar físico que a impede de se fazer presente”, diz.

Com a decisão, a profissional receberá saldo de salário, 30 dias de aviso prévio, férias proporcionais, 13º proporcional, multa de 40% sobre o FGTS, indenização substitutiva ao período de estabilidade (cinco meses após o nascimento da criança) e indenização por dano moral no valor de R$ 2 mil. Cabe recurso (processo nº 1000573-83.2022.5.02.0708).

A maternidade, segundo Fabíola Marques, é um bom exemplo para a aplicação do protocolo. “Porque é algo que a mulher quase que assume tudo sozinha”, afirma. Levantamento do IBGE referente ao ano de 2019, divulgado em março de 2021, mostra que, enquanto apenas 54,6% das mulheres, de 25 a 49 anos, que vivem com crianças de até três anos de idade, estavam empregadas, 89,2% dos homens trabalhavam, mesmo com crianças pequenas.

Uma enfermeira, mãe de um menino de nove anos com paralisia cerebral, também obteve decisão com base no protocolo do CNJ. Ganhou o direito à redução de jornada sem desconto na remuneração. De acordo com a decisão liminar da juíza Andrea Cristina de Souza Haus Waldrigues, da 3ª Vara do Trabalho de Lages (SC), “mais do que atual, é necessária a análise do presente processo sob a perspectiva de gênero, eis que se trata de mulher, empregada, mãe, e cujo filho demanda cuidados constantes” (processo nº 0001165-09.2021.5.12.0060).

Outros temas, como pedido de equiparação salarial com homens que ganham mais na mesma função dentro da empresa podem ter a aplicação do protocolo, afirma Fabíola. Até porque, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE, as mulheres ganhavam cerca de 20% menos do que os homens em2021.

Ao julgar procedente um pedido de pagamento de diferenças salariais a uma consultora que recebia remuneração inferior aos seus colegas de setor, a juíza Natália Queiroz Cabral Rodrigues, da 22ª Vara do Trabalho de Brasília, afirmou que o julgamento com perspectiva de gênero “não é uma faculdade do magistrado, mas sim uma imposição constitucional” (processo nº 000036-74.2020.5.10.0022).

O protocolo do CNJ também tem sido aplicado para assegurar direitos e medidas protetivas para pessoastrans.Emdecisãorecenteda6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça(STJ), os ministros aprovaram o pedido de uma mulher trans contra seu pai, estendendo a interpretação da Lei Maria da Penha. O relator, ministro Rogério Schietti, em seu voto, afirma que “o objetivo da Lei Maria da Penha é punir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar em virtude do gênero” (caso em segredo de Justiça).

Apesar da aplicação do protocolo em algumas situações, ainda há muito o que fazer, segundo a especialista em Direito de Família, Gênero e Infância e Juventude, Marilia Golfieri Angella, sócia de banca que leva seu nome. Para ela, na prática, ainda há resistência entre os magistrados da área de família.

Como exemplo, Marilia cita a imposição do limite dos 30% do salário mínimo de pensão alimentícia, que tem sido adotado no Judiciário. “Essas decisões não levam em consideração a sobrecarga dessa mãe que vai ter que arcar com todos os outros custos da criança”, diz.

Mas já há casos em que o protocolo de gênero foi aplicado. O juiz Vincenzo Bruno Formica Filho, da 1ª Vara da Família e Sucessões do Foro de Santana (São Paulo), estabeleceu o valor de 50% do salário mínimo (R$ 606) a uma mãe. A advogada dela alegou sobrecarga materna. Além da criança de dois anos e nove meses, ela ainda têm dois filhos de um primeiro casamento para cuidar e rendimento líquido de um pouco mais de R$ 3 mil.

Fonte: Valor Econômico