Vizinhos do barulho

Isolados na pandemia, vizinhos de um prédio do Centro de São Paulo se tornaram amigos de porta e estreitaram os laços com a solidariedade exigida no período. Passada a tensão sanitária, amenizada por churrascos e encontros na piscina, o cenário teve uma reviravolta com desentendimentos envolvendo uma exintegrante do grupo que deixaram o condomínio da Rua Bela Cintra em pé de guerra. Na Justiça, as denúncias são de difamação na internet e de agressões verbais e até físicas.

"Temos medo até de pegar o elevador. Se ela estiver lá, não vou entrar. Mas quem garante que ela não vai sair e me agredir? Não temos mais paz", conta a moradora S.O., que prefere se manter anônima após ter sido exposta na internet pela vizinha, acusada de estar por trás de uma escalada de violência que passa por vídeos incriminadores, cenas de bate-boca e até tapa na cara.

Se por um lado o lockdown provocado pela Covid-19 aproximou pessoas, por outro fez que as confusões condominiais em SP crescessem mais de 300%, de acordo com a Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo (AABIC). Com a flexibilização para sair, as brigas deram uma acalmada, mas o crescimento do home office pode explicar o fato de terem voltado a subir.

"Conflitos sempre existiram, mas aumentaram na pandemia, quando pessoas com interesses diferentes tiveram de ficar em casa. Depois, diminuíram de novo. Mas com o aumento do uso de garagens e áreas comuns que antes não estavam sendo utilizadas e de convivência no prédio, as notificações voltaram a crescer. É como se as pessoas achassem que agora podem tudo", observa José Roberto Graiche Junior, presidente da AABIC.

PADARIA DENTRO DE CASA
Região com maior número de habitantes por quilômetro quadrado da capital paulista, a Subprefeitura do Campo Limpo, na Zona Sul — que não abrange a Rua Bela Cintra — foi a que contabilizou mais problemas com barulhos: somente nos primeiros três meses deste ano, foram 1.074 queixas.

A prefeitura registrou cerca de três reclamações por hora também no primeiro trimestre deste ano por conta de violações ao Programa Silêncio Urbano (PSIU).

Casos de desavenças entre vizinhos viraram um problema para moradores, síndicos, para a polícia e o Judiciário — a “guerra” na Bela Cintra corre em sigilo de Justiça, os moradores têm receio de falar, alguns andam até com spray de pimenta na bolsa. O GLOBO não conseguiu contato com a acusada.

Na semana passada, em Campo Grande (MS), um morador foi agredido com socos pelo subsíndico do prédio, tudo por conta do uso do elevador social para transportar uma cachorra.

E, em Salvador, num condomínio do bairro Vila Laura, um motim se formou entre condôminos ao descobrirem que vizinhos tinham montado uma padaria dentro de casa. Além do barulho, os incomodados pelo estabelecimento caseiro reclamam de elevadores sempre lotados.

Apesar de alguns episódios parecerem curiosos, não raro há registros mais graves com tiros em discussões e até morte. E o que deveria ser um luxo — condomínios cada vez mais sofisticados e com grande oferta de serviços e lazer — tem mostrado também efeitos colaterais negativos na convivência, que não eram esperados.

"Os casos vêm aumentando também pela quantidade de itens que existem nos empreendimentos, que hoje têm mais áreas de lazer. É uso de piscina, aula com personal trainer, entre outras atividades que podem acabar criando desentendimentos", completa o portavoz da AABIC.

Diretor da Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis (Abadi), Marcelo Borges observa que as pessoas ficaram menos compreensivas após a emergência sanitária internacional.

"Às vezes, falta fazer um exercício empático para perceber que o vizinho tem o direito de fazer obras no seu apartamento, por exemplo, desde que no horário permitido pelo condomínio. Estabelecer essa mediação entre os dois lados é um desafio para os síndicos", aconselha.

DISPUTAS NA JUSTIÇA
Num dos prédios mais icônicos (e populosos) de São Paulo, o Copan, as obras represadas na pandemia têm sido fonte de atribulações entre vizinhos e de ânimos exaltados.

"As britadeiras começam às 8h, 8h30, e os vizinhos xingam, vão até o apartamento querendo parar a obra", conta o mestre de cerimônias e celebrante Antonio José Pinheiro Lima, de 63 anos, seis deles morando no Copan, que relata ainda atritos decorrentes do alto número de apartamentos administrados por aplicativos de hospedagens: "Muitas dessas pessoas não têm o mesmo cuidado de quem efetivamente mora no prédio. É música alta, festa até tarde, e tudo isso tem incomodado a vizinhança".

Na falta de entendimento dentro do próprio condomínio, muitos casos acabam judicializados. O Código Civil tem um capítulo com regras específicas sobre direito de vizinhança, em que são tratadas as questões mais diversas: as regras abordam desde a forma de lidar com uma árvore que invade a casa ao lado até respostas a perguntas sobre de quem seria a responsabilidade de fazer a conservação de um muro entre duas residências.

Somente em 2019, último ano com dados consolidados —ainda antes da pandemia —, chegaram ao Judiciário 13.810 casos relativos ao direito de vizinhança: o maior número da série histórica, iniciada em 2014. Para agilizar a busca por soluções, os tribunais incentivam a mediação ou conciliação. Não à toa, o Manual de Conciliação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está recheado de instruções e exercícios com situações envolvendo vizinhos.

"Infelizmente, temos notado um novo aumento de conflitos, que deixam de ser um simples bate-boca e passam a ser uma questão jurídica, um crime mesmo como injúria ou lesão corporal. Isso acontece quando há ameaças, agressões e situações que causam perturbação suficiente à suposta vítima", explica Heidi Florêncio Neves, presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). 

O que fazer se o perigo morar ao lado?
- Especialistas defendem que,em casos de desentendimentos e brigas com vizinhos, a melhor saída é sempre tentar primeiro resolver os conflitos administrativamente, dentro do próprio condomínio,com o apoio do síndico,antes de outras medidas mais drásticas.

- As regras internas dos edifícios preveem punições para esses casos, como multas e até,em situações extremas, a expulsão do morador.

- Em ataques verbais, ameaças frequentes e até agressões físicas, cabe mover queixa-crime com o auxílio de advogados. A depender do conflito, ele pode ser configurado como crime de injúria ou até lesão corporal. Também é recomendado recorrer às autoridades, como o Ministério Público e a própria polícia. A orientação comum a todos esses casos é ter tudo registrado,para comprovar a violência. "O ideal é reunir o máximo possível de provas. Gravações, fotos, prints, testemunhas", explica a advogada Heidi Florêncio Neves, presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).

- Testemunhas podem ser o mais difícil de obter, porque muitas vezes, por serem vizinhas, as pessoas se sentem incomodadas e com medo de serem perseguidas. Pensam que, se testemunharem contra um vizinho, pode ser que amanhã ele faça as mesmas ameaças ou cometa as mesmas agressões contra elas.

Fonte: O Globo