Burnout ganha maior visibilidade

Questões de saúde mental já foram vistas no mundo corporativo como um sinal de fraqueza, uma “característica” de alguém que não dava conta do trabalho. Era normal, por exemplo, que consultórios terapêuticos tivessem um layout estratégico para os pacientes não se encontrarem na sala de espera. Assim como alguns profissionais não acionarem o plano de saúde da empresa para tratar de depressão, ansiedade ou esgotamento.“Atendo muitos executivos e, de alguns anos para cá, percebo que o discurso mudou. Não existe mais vergonha ou receio. Há, inclusive,quem abra mão da carreira por adoecer”, diz a psicanalista Claudia Cavallini, professora associada da HSM Academy.

Dois movimentos impulsionaram essa mudança. O primeiro foi a pandemiade covid-19,que abriu os olhos das empresas para a questão. Segundo dados da International Stress Management Association (Isma), o Brasil é o segundo país com mais casos de burnout no mundo. Outro estudo da 121 Labs, que promove pesquisas sobre o cenário econômico e social do país, feita em setembro de 2022 com 2,1 mil pessoas, mostra que entre as 85% que foram diagnosticadas com a síndrome, 17% tiveram quadros severos, 36% mediados e 32% estavam em estado inicial.

O segundo movimento foi o reconhecimento, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), do burnout como doença ocupacional em janeiro de 2022. Isso quer dizer que o profissional tem os mesmos direitos trabalhistas e previdenciários das demais enfermidades relacionadas ao trabalho. Nesse cenário, já não é raro ouvir depoimentos de altos executivos sobre o esgotamento físico e mental relacionado ao trabalho. No último dia 19, a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda  Ardern, comunicou que deixará o cargo no próximo mês. Ela afirmou não ter mais energia para continuar. “Sou humana, os políticos são humanos. Damos tudo o que podemos pelo tempo que pudermos. E para mim, está na hora”,afirmou.

Otávio Brissant, diretor jurídico e de pessoas do Hurb, plataforma de viagens on-line, sabe como é chegar a esse limite. O executivo sofre com a ansiedade há cerca de 20 anos e já parou no hospital duas vezes por achar que estava infartando. Mas o diagnóstico era, na verdade, burnout. “Na época trabalhava num escritório de advocacia, setor no qual é preciso estar à disposição sempre. Você é como um ‘prestador de serviço' e a mentalidade é de que se não fizer, alguém fará”.

Ele deixou esse escritório e, em 2015,ingressou no Hurb. Até que em 2021, ao adicionar em seu escopode trabalho a gestão da área de pessoas, viu o copo transbordar mais uma vez. “Com a nova área, precisei estudar muito. Isso, em paralelo com toda a reestruturação da equipe e sem deixar de olhar para o jurídico. Foi uma fase de muito trabalho. Dormia pouco e me cobrava demais”, diz. Segundo ele, chegou um momento em que não conseguia mais ficarnas reuniões, tinha fortes dores no estômago e sudorese. Sair de casa era uma missão quase impossível. “Estava no limite”, conta. Brissant não pensou duas vezes e expôs a situação à empresa dizendo que precisava de um tempo para se recuperar. Como o Hurb tem uma política estruturada nessa área, ele pôde tirar cinco semanas. Aliado ao descanso, passou por tratamento com psiquiatra e terapeuta.

“Trabalhamos na prevenção, com ações de bem-estar e conscientização, e treinamento sobre o assunto. A ideia é agir antes que alguém adoeça”, diz Bruna Zonis, gerente de pessoas do Hurb. Entre as ferramentas, ela destaca o selfgrowth, benefício anual no valor de um salário bruto que pode ser usado para cuidados com a saúde física e mental, educação ou coworking. Em 2022, mais de 68% dos funcionários usaram o benefício, sendo 26% para saúde física e cerca de 14% para saúde mental. A empresa conta, ainda, com psicólogos que atuam direto com as equipes, como business partners, para identificar excessos que possam gerar burnout e outras doenças.“Eles são treinados para detectar quebras de padrões de comportamento, como pessoas mais estressadas ou reclusas”, diz Zonis.

Outro ponto essencial para prevenir o burnout é o treinamento dos líderes, como reforça o psiquiatra Arthur Guerra, fundador da Caliandra Saúde Mental, empresa que oferece soluções e treinamento de liderança nessa área. “Assim como temos as simulações obrigatórias em casos de incêndio, todos na empresa devem ser capacitados, periodicamente, sobre as doenças mentais”, diz. Isso inclui, explica o especialista, os gatilhos do burnout, como identificar seus sinais, a melhor forma de agir e, principalmente, um trabalho cultural - que sai de uma gestão que busca resultados a qualquer custo, para uma de colaboração e escuta ativa.

Na Neoway o tema também está na pauta. “O primeiro passo foi fomentar um ambiente de segurança psicológica. Para isso, elaboramos em parceria com uma consultoria interna um workshop sobre o tema para a liderança”, explica Michele Martins, vice-presidente de RH da empresa. Depois dessa base, os líderes passaram por outra capacitação, agora para ajudá-los a gerir o time pensando no bem-estar, mas sem deixar de lado a boa performance. Entre os temas, estavam autoconhecimento, empatia e gestão humanizada. “Ele precisa, antes, se conhecer, para entender como ser um bom gestor, aquele que ouve e conhece as necessidades do time; que fala de carreira e produtividade, mas também de questões pessoais”, diz.

Mas apenas prevenir e tratar não basta. “É preciso também atuar na reabilitação do profissional, pensando em como será a volta ao trabalho”, explica Izabella Camargo, autora do livro “Dá um Tempo: como encontrar limites num mundo sem limites” (Principium). Ela explica que o burnout pode deixar sequelas, assim como qualquer outra doença, e a empresa deve pensar no retorno do funcionário tendo isso em mente. “Alguns podem voltar e não ter condições de desempenhar a mesma atividade, o que pode ser passageiro ou não”,diz.

O Hospital Sírio Libanês tem um olhar atento a esse retorno.“Quando alguém machuca a perna, fica mais fácil perceber se ficou com alguma dificuldade; no caso das doenças mentais, é mais difícil. Por isso, realizamos um prognóstico de recuperação com uma equipe formada por médico, terapeuta ocupacional e psiquiatra”, explica Octavio Augusto Camilo de Oliveira, coordenador médico de saúde do trabalhador do hospital. A ideia é estabelecer um retorno gradativo e verificar se a pessoa pode voltar a desempenharamesma atividade, se é preciso alguma mudança ou, até, um novo afastamento. Ele explica, ainda, que a companhia atua para identificar precocemente funcionários que estejam com sinais de exaustão. “Em alguns casos, providenciamos mudançade área ou escala”.

Apesar dos avanços, no entanto, ainda há um longo caminho pela frente. Há exemplos de companhias com programas estruturados, mas muitas ainda olham o tema a partir de ações isoladas. Não à toa, uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva com 532 RHs de empresas brasileiras, mostra que 28% deles relataram aumento de casos relacionados à saúde mental após o início no último ano, um aumento de 10% em relação a 2021. E só 12% das empresas afirmaram ter um programa para prevenir casos assim.

Para Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association (ISMA), o que acontece, no geral, é que muitas companhias ainda atuam na prevenção secundária, fase em que os sintomas do burnout já existem. “Não basta disponibilizar palestras, desconto em academias ou subsídio para terapia, sem agir para eliminar os estressores que levam ao burnout, como sobrecarga, horas excessivas de trabalho e gestores tóxicos”, afirma.

Um levantamento do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe, feito por meio da plataforma Data Lawyer, mostra que a judicialização decorrente da síndrome aumentou 72% entre 2020 e 2022. Nesse período, mais de quatro mil processos trabalhistas transitaram. Isso equivale a quase o dobro do registrado entre 2017 e 2019, que chegou a 2,3 mil ações.

Anna Sotero, até então diretora comercial da B2W Digital, da Americanas.com, está nessa estatística. Ela foi afastada do trabalho no final de 2021 por conta de um quadro de burnout, mas ao retornar, em janeiro deste ano, foi demitida. “Assim que cheguei, fui recebida por meu líder e o RH, e informada que estava sendo desligada — sem nenhuma explicação plausível. Não pude nem subir para pegar minhas coisas e falar com meus colegas. O resultado de 28 anos de dedicação acabou assim, com frieza e sem nenhuma empatia”, lembra. Sotero conta que, olhando para trás, fica nítido o ambiente tóxico em que estava, no qual só os resultados importam. “Não havia nenhum olhar para o ser humano por trás do profissional. Eu mal conseguia tirar férias e, durante a pandemia, por exemplo, mesmo fazendo um trabalho que não demanda estar fisicamente no escritório, fomos obrigados a trabalhar de maneira presencial”,diz.

Segundo ela, o burnout surgiu como reflexo de vários excessos. “Entrei em um túnel muito escuro. Fiquei deprimida, tinha crises de pânico, falta de ar e me concentrar era muito difícil”, ressalta. Foi aí que seu médico a afastou. “Lembro que ninguém da empresa falou comigo sobre o assunto. Já em casa, tentei fazer contato e nada. Era como se eu não estivesse mais”. A executiva entrou com um processo contra a empresae, em 10 de janeiro deste mês, a Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro, suspendeu a demissão e determinou a reintegração imediata da diretora, sob pena de R$ 50 mil de multa. A reportagem tentou contato com a empresa, mas não teve retorno.

“Todas as companhias precisam rever sua cultura e jornada de trabalho.O mundo atual não permite mais excessos e produtividade a qualquer custo”, completa Cavallini, da HSM.

Fonte: Valor Econômico