Ao culpar empregados, moradores vão da mesquinharia ao preconceito

Nos filmes, livros e novelas policiais e de suspense, o mordomo é o principal suspeito dos crimes que ocorrem nas mansões. Afinal, é um serviçal e, mesmo que de confiança, não é da mesma casta.

Na ficção, isso é caricato e sempre divertido. Mas, quando a vida imita a arte, tudo pode se tornar perigoso, especialmente quando, automaticamente, desconfia-se de alguém por causa de sua condição social ou profissão. Com tristeza, certa indignação e impotência, observo tal fenômeno nos condomínios e constato que muitos moradores ultrapassam a tênue linha que separa seus meros pensamento mesquinhos de verdadeiros atos de preconceito e de discriminação.

Vou aqui narrar duas situações corriqueiras:

1) Prédio novo, dezenas de apartamentos em obras, muitas famílias já morando.

Um volume grande de pedreiros, gesseiros, marceneiros e de famílias que estão ainda se conhecendo. Eis que uma série de pequenos crimes começam a ocorrer, tais como furtos de bicos de mangueiras de incêndio, furto de plaquinhas de identificação e tentativa de arrombamentos.

No grupo dos moradores, surgem as ideias para acabar com os delitos: revistar bolsas e porta-malas dos prestadores de serviços e reforço de seguranças para controlar a entrada deles.

Ora, mas e os moradores, seus parentes e amigos, não podem eventualmente ser os meliantes? Não devem ser igualmente revistados? O tal do “noia”, que furta uma peça de cobre para trocar por uma pedra de crack não pode ser o filho deum proprietário?

2) Prédio antigo, famílias tradicionais e que se conhecem há décadas. Eis que ocorre um furto de grandes proporções em um dos apartamentos, com meliantes flagrados nas câmeras entrando e saindo tranquilamente com os objetos furtados.

Após uma comoção geral no grupo de moradores, eis que surge a brilhante ideia de trocar a empresa que fornece os funcionários, ante a desconfiança que algum porteiro “deve ter passado a fita” e facilitado o acesso dos bandidos.

Veladamente, com o passar do tempo, descobrem se tratar de um triste caso em que um dos proprietários teve participação direta no ocorrido.

Dureza imaginar que nossos filhos, parentes ou amigos que nos visitam possam cometer crimes, mas parece meio automático imaginar que o empregado talvez o faça. É o nosso resquício da casa grande e senzala, algo abominável e que precisamos combater e repudiar todos os dias.

Importante que os condomínios elaborem, com a ajuda de consultores, planos e projetos para a área de segurança, constante treinamento aos funcionários, conscientização dos moradores e sistemas de controle de visitantes e prestadores de serviços de forma a evitar ocorrências, sempre nos limites da nova LGPD (lei de proteção de dados).

Autor: Márcio Rachkorsky – advogado
Fonte: Folha de São Paulo