Registros de perturbação de sossego mais do que dobram em meio a brigas de vizinhos na quarentena

As ocorrências de perturbação do trabalho ou sossego alheios mais do que dobraram na cidade de São Paulo durante a quarentena imposta para controlar a disseminação do coronavírus, iniciada em março, segundo dados da Polícia Civil obtidos pelo G1 via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Com todo mundo em casa, devido à popularização do home office e a suspensão das aulas presenciais, as pessoas passaram a conviver mais com os vizinhos e os problemas nos condomínios acumularam-se no período.

No dia 10 de agosto, um homem foi preso após jogar gás de pimenta por baixo da porta de um apartamento vizinho em obras em um edifício no Jardim Paulista, na Zona Sul de São Paulo. Quatro operários que trabalhavam na obra passaram mal e foram socorridos. Ele foi liberado após assinar um termo circunstanciado de ocorrência de lesão corporal, porte de droga (maconha foi encontrada no apartamento) e periclitação da vida e da saúde.

De março a julho de 2020, foram 1.072 termos circunstanciados registrados nas delegacias da capital e pela internet, contra 441 registrados no mesmo período do ano passado - um aumento de 143% no período analisado. No mesmo período de 2018, foram 422 casos.

Apenas em julho deste ano foram registrados 296 casos de perturbação de sossego referente a conflitos entre vizinhos na cidade de São Paulo - contra 94 registrados no mesmo mês em 2019 e 84, em julho de 2018.

Os registros foram feitos com base na Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nª 3688), editada por Getúlio Vargas, em 1941. O artigo 42 da referida lei prevê pena de prisão simples de quinze dias a 3 meses para quem perturbar o trabalho ou o sossego alheios:

- Com gritaria ou algazarra
- Exercendo profissão incômoda ou ruidosa
- Abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos
- Provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal

Os dados obtidos pelo G1 com base na Lei de Acesso à Informação confirmam o aumento do número de reclamações recebidas por associações que administram condomínios. Segundo a Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios (AABIC), houve aumento de mais de 200% das notificações extrajudiciais feitas aos moradores de prédios durante a pandemia em São Paulo.

A Lar.app, primeira administradora digital de condomínios, também registrou, entre março e julho, acréscimo de mais de 87% das reclamações referentes a barulho nos prédios que coordena em todo o país e de mais de 250% das notificações enviadas aos condôminos no período em relação ao mesmo período de 2019.

"Desde que a pandemia começou, muitas empresas passaram a fazer home office. Está tudo mundo em casa o dia inteiro. Não sabíamos nem o nome dos vizinhos ou os víamos raramente, de passagem pelo elevador e, agora, convivemos 24 horas por dia. Está todo mundo dentro de casa, é um novo contexto para todos se adaptarem", diz Leonardo Boz, especialista em condomínios e co-fundador de uma administradora virtual de edifícios residenciais.

"Os condomínios têm suas leis internas, que são os regulamentos. Eles preveem, por exemplo, horários de mudança e de barulho. Com todo mundo em casa nesse período, aos poucos, os edifícios podem passar a fazerem mudanças nestas regulamentações para evitarem maiores problemas, criando horários mais rígidos e diferenciados para barulho, por exemplo", explica Boz.

Atualmente, a maioria das reclamações, conforme as administradoras de condomínios, envolve barulho e ruídos feitos dentro dos apartamentos, como gritarias, som alto, ou atividades físicas.

"As crianças também estão em casa o dia inteiro e estão fazendo aulas à distância. Recebemos reclamação de crianças que pulavam corda e corriam no apartamento, porque tinham a aula de educação física, por exemplo. O barulho que não ouvíamos antes ou não nos chamava a atenção, agora faz a diferença. E nós também fazemos barulhos: são reuniões virtuais, conversas ao telefone, aulas. A nossa vida se resumiu à nossa casa", explica Leonardo Boz.

Para o advogado especialista em condomínios, Marcio Rachkorsky, a quarentena mudou o comportamento dos vizinhos em prédios de apartamentos, boa parte de forma positiva e solidária, mas alguns problemas relacionamento que antes eram tolerados passaram a ser de difícil solução para os síndicos.

"Dá para dizer que teve bastante mudança boa na relação entre vizinhos em condomínio, como mais proximidade entre os moradores, vizinhos passaram a se ajudar mais, ficaram mais tolerantes, criaram grupos para ajudar a fazer compras, passaram a valorizar mais os funcionários, o cargo do síndico passou a ser mais respeitado por causa do abacaxi que é."

Por conta do fechamento das áreas comuns, as reclamações sobre o barulhos de crianças brincando diminuíram muito. Outra queixa muito comum antes da pandemia estava relacionada ao uso da garagem. Com mais pessoas isoladas em casa e sem usar o carro, esse tipo de reclamação praticamente não existiu na pandemia.

Salto alto, liquidificador, ginástica e volume de TV

Rachkorsky disse que antes da pandemia havia muita reclamação relacionada a grandes barulhos e, agora, mais reclamações corriqueiras.

"Como festa na churrasqueira em que o vizinho abusou do som até tarde. Agora, com todo mundo em casa e com os espaços comuns fechados, as reclamações migraram para questões mais corriqueiras, como o barulho do apartamento de cima, com o morador fazendo ginástica, criança correndo, TV alta, som alto, uso de salto alto, um liquidificador funcionando tarde da noite. Pequenos barulhos passaram a incomodar mais, principalmente porque as pessoas estão conectadas, trabalhando de casa em home office, estudando em casa."

Com a flexibilização da quarentena, prevista no Plano São Paulo do governo do estado, outro problema começou a surgir. "No começo da pandemia os moradores foram proibidos de usar as áreas comuns e academias. Com a flexibilização o uso mudou bastante por conta da reserva de uso e isso ficou difícil administrar. A inadimplência aumentou muito também, aumento de consumo de gás, de água, energia elétrica."

Vizinho antissocial piorou na pandemia

Os moradores conhecidos por causarem problemas para os vizinhos pioraram o comportamento, segundo ele.

"Alguns condomínios já conviviam com aquele morador chamado antissocial, que é o cara que reiteradamente descumpri as regras e atrapalha a harmonia do condomínio. Durante a pandemia, em muitos condomínios, essas pessoas tiveram comportamento ainda pior. A maioria esmagadora dos condôminos compreenderam a necessidade de bom comportamento durante a quarentena, mas teve aqueles que já tinham histórico e agiram de forma contumaz e deu mais trabalho do que todos juntos."

Empresa dentro do apartamento

A crise financeira provocada pelo isolamento social gerou um novo problema para os síndicos resolverem. "Com as pessoas em casa, e muitas delas com a renda reduzida, começou a surgir um outro problema sério e difícil de resolver, que foi o de vizinhos que começaram a cozinhar em casa, vender comida para os vizinhos e para fora mesmo", disse Rachkorsky.

"Com isso veio o cheiro de comida o dia inteiro no prédio, o que não é nem o mais grave, mas o problema maior é quando o condomínio tem consumo coletivo de gás e de água e as reclamações partiram do ponto de que os outros vizinhos se incomodaram em dividir a conta da empresa do outro que passou a cozinhar para fora", disse ele.

Segundo ele, esse assunto deve ser pauta nas assembleias após o fim da quarentena. "Esse tem sido um assunto bem delicado, pois as pessoas precisam de renda e passaram a receber fornecedores, clientes, o que descaracteriza o uso residencial do apartamento, mas também não tem como evitar a entrada do visitante. Vai ser um assunto que vai seguir pela frente."

Aumento de obras

Rachkorsky disse também que as obras nos apartamentos, que antes da pandemia eram mais tolerados, hoje são questões mais difíceis de resolver.

"Antes da pandemia, quando um vizinho começava a fazer obra, o outro lamentava porque teria de conviver com o barulho por meses até. Agora, com a pandemia, essas questões ficaram muito sensíveis porque tem a necessidade da obra e no apartamento próximo tem alguém estudando ou trabalhando e que não consegue se concentrar. O maior pesadelo dos síndicos tem sido em acomodar os interesses de quem precisa se concentrar com quem precisa fazer a obra."

Para Rosemary da Costa, que é conselheira de um prédio e recebe, por mensagens pela internet, as reclamações dos moradores de seu prédio. "Vem desde reclamação sobre cheiro de comida, furadeira, batida de porta, voz alta, criança gritando. Tá todo mundo em casa e falando ao mesmo tempo", diz ela.

Outro problema visto nos condomínios no período são as reformas. A plataforma GetNinjas, que registra pedidos de atendimento de serviços em condomínios, registrou um aumento de 20% nos pedidos de reformas e reparos na segunda semana em relação à primeira semana de março, antes da pandemia.

Fonte: G1